terça-feira, maio 01, 2007

o choro e a cama vazia (adeus, Dona Maria!)

À 0h20 de segunda-feira, 30 de abril, Dona Maria finalmente conseguiu descansar. Antes da 1h os familiares já estavam quase todos ali, reunidos em volta da cama. Uma das filhas tinha um mórbido e providencial plano funeral, logo as medidas cabíveis pareciam ser rapidamente providenciadas. Não, não seriam. Feriado prologando, médicos viajando e ninguém para assinar o maldito atestado de óbito. Só depois do meio-dia isso seria resolvido. Enquanto o doutor assinava a papelada na cozinha, nós netos preparávamos a macarronada que tantas vezes Dona Maria fez para gente. Naquela época comiamos sentados num grande banco para comportar todos os netos. Agora não mais.

Almoçamos e precisamos convencer as tias a fazerem o mesmo. O corpo permanecia na cama onde ela passara os últimos meses agonizando e os últimos anos num sofrimento insano. Genros foram até a funerária. Nada feito. Pelas normas de não-sei-o-que, o horário não permitia agendamento de enterro para aquele dia. Velaríamos então o corpo de Dona Maria por mais uma noite em sua casa. Parentes amados ou indiferentes, gratos ou ingratos apareceram. E assim foi. Aquela senhora mãe de 12 filhos, 18 netos, 2 bisnetos, recebeu todas as devidas homenagens: o pesar da família, a ladainha das rezadeiras, a benção do padre, o conforto dos amigos. Lá pelas 3 da manhã, muitos cochilavam, outros permaneciam junto ao caixão. O cheiro do café era sempre forte e lembrava o tempo em que ela nos preparava aquele pão caseiro acompanhado do cafezinho para o adultos e limonada pra criançada.

Sentei no sofá deslocado da sala para o quarto de Dona Maria e pela primeira vez vi sua cama vazia. Só então foi possível entender que era o fim de uma era naquela família. E eu não consegui chorar. Nem naquela hora nem quando o irmão dela de mais ointenta anos veio sozinho de ônibus, amparado em sua bengala só pra dizer adeus. Passou do ponto e voltou a pé para abraçar sua irmã pela derradeira vez. Nem assim pude chorar. Talvez eu já estivesse preparado. A neta caçula de quatro anos não entendia e disse para mãe que adulto não chorava. Talvez eu tenha me confortado. De qualquer forma, eu sinto muito, vó Maria. Me perdoe por não conseguir rezar, por não acreditar nisso tudo, por não conseguir sofrer como devia. Vai com Deus. A sua bença, minha vó.
"Deus abençoe", ela me responderia baixinho como sempre. Só que agora a cama dela está vazia. E as lembranças estão todas de volta.

11 comentários:

Raquel disse...

Ai Rô, não pense nisso como algo triste, pois não é triste. É o ciclo da vida... A gente nem tem que entender muito, bobagem. Não se sinta culpado por não rezar, por não chorar, você apenas viu de forma diferente. É claro que vai sentir saudade, lembrar com carinho... Eu, que nem era apegada ao meu avô, outro dia vi uma foto dele e senti uma pontadinha no coração. Mas nada que matasse. Só uma falta mesmo, que não vai ser preenchida nunca. Beijos!

Anônimo disse...

eu nem sei o que dizer,cousin...vc disse tudo.pra mim tá sendo difícil,aliás,pra todos nós,mesmo sabendo que a melhor coisa é ela ter ido descansar.sorte que temos um ao outro nos momentos bons e ruins,né?
obrigada pelo seu colo durante esses dias.
beijo!
Isis

Dani disse...

Rô, nós acompanhamos contigo todo o sofrimento de sua "vózinha" e da sua família também. Sabemos que a missão aqui já foi cumprida. Esteja certo de que, embora vc não acredite, Deus é maravilhoso e nos reserva um paraíso junto à ele. Um dia no "além", quando nos encontrarmos para um bate-papo, vc vai me dizer ... "Tesolin, não é que vc estava certa?", rsrs
Força amigo!!! a nossa medíocre vidinha por aqui, continua...

Anônimo disse...

tua dor é mais que transbordante pelo texto, meu caro, embora ainda eu deva dizer: sequer posso conceber o que é perder alguém próximo.
meus pêsames, meu pesar. te desejo forte recuperação após a tristeza que é inevitável (choro é apenas um detalhe).

Anônimo disse...

Seu texto me trouxe lágrimas aos olhos... Engraçado, não... E que coisa linda é a memória, aquela que vem de repente, das sensações, dos cheiros... Proustiano... Um beijo, Rodrigo.

Marina disse...

Não é preciso chorar para demonstrar a tristeza, esse texto transmite exatamente o que vc sente, de modo pungente. Fora isso, tive a sensação de estar dentro de um filme brasileiro que mostra um daqueles velórios em cidades pequenas do interior. Seus textos incitam a imaginação, e me despertam imagens muito nitídas na mente. Sinto muito pela sua avó.

Anônimo disse...

As lágrimas mais doídas são aquelas que escorrem por dentro e que foram impressas ao longo do tempo. Elas surgirão sim, todas, pois estão presentes na lembrança de cada gesto, de cada cheiro, em cada sorriso, e em cada palavra da sua avó...Uma alma que parte deixa sempre um legado, seja ele grande ou pequeno. Mas quem dimensiona a importância de quem se vai, são aqueles que ficam. E Lembre-se de que realmente homem não chora. Por isso, que é preciso ser muito macho pra chorar. Ainda que seja em silêncio, do seu jeito, lá no canto da sala. Força Sempre!

Anônimo disse...

Formas de ver o mundo, de entender e amar as pessoas, de exarcebar ou encarcerar sentimentos. Cada um de nós tem o seu jeitinho, e pode ter certeza de que vc conseguiu transmitir nesse texto um amor puro.
Força pra vc e todos os seus!
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Dill
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Anônimo disse...

eu acredito que ela leu...(com um meio sorriso nos lábios)

Anônimo disse...

Rô, cada um manifesta de uma forma. E o que você sentiu, com certeza ela sentiu também!!
Beijo meu amigo...

F. disse...

Rodrigo, teu relato calou fundo. Minha avózinha também partiu em casa, no início de uma noite. Tinha acabado de se deitar, passou mal, levantou e morreu na cadeira de balanço onde eu me acostumara a vê-la descansando nos 10 anos anteriores, depois que uma fratura de fêmur tornou penoso qualquer deslocamento... Ela tinha 89 anos e se Beatriz. Eu também não chorei quando a peguei no colo para colocá-la na cama, à espera do médico que assinaria o atestado de óbito. Mas desabei no velório, no dia seguinte e até hoje sinto quando me lembro dela. Já se passaram 16 anos. Não sei se acredito em vida após a morte, em Deus, em nada. Mas às vezes sinto que ela está por perto, olhando por mim. Força, amigo (ainda que atrasado).